Já deixou caixas de pizza sujas de gordura no contentor azul? Não devia. E jarras ou pratos partidos no vidrão? CD e DVD no recipiente dos plásticos? Tudo errado. Segundo os especialistas, estamos atrasados cerca de 20 anos em relação aos países que melhor reciclam, como a Alemanha e a Áustria. Nos últimos meses, o Expresso entrou num camião de recolha e seguiu-o até à Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos Urbanos, acompanhando todo o processo até ao destino final, para perceber o que acontece ao papel, ao vidro e ao plástico que é separado e reciclado.

Com a pandemia disparou o uso de máscaras, luvas e outros plásticos de utilização única, com um peso na produção de lixo que só em 2021 será possível, de facto, avaliar. Para já, os dados do relatório de resíduos urbanos de 2019 (últimos disponíveis) mostram-nos que Portugal produziu mais lixo, mas continuou a reciclar pouco e a enviar mais de metade para aterros.

No ano passado reciclou-se apenas 13,1% do plástico, papel, metal e vidro, e 8,4% de resíduos orgânicos; 3,3% tiveram outras valorizações, como o caso do óleo alimentar, que é transformado para a produção de biodiesel (que não é considerado reciclagem); 17,4% foram incinerados; e a grande maioria (57,8%) seguiu para aterro.

No caso do plástico, os valores de reciclagem não só não aumentaram como diminuíram um ponto percentual face a 2018 (para os 11%).

Ainda assim, a manter-se o ritmo atual, o país está longe de conseguir alcançar as metas que a União Europeia traçou até 2035.

Para Carmen Lima, coordenadora do Centro de Informação de Resíduos da Quercus, “a reciclagem começa pela participação de todos: de quem separa o lixo em casa, de quem o separa no Ecocentro, dos recicladores, de quem incorpora a matéria-prima reciclada em novos materiais e do consumidor final”. Em todas estas fases, garante, há problemas.

Um dos primeiros obstáculos é, desde logo, o financiamento. O processo de reciclagem é custeado, em grande parte, pela taxa aplicada por tonelada às empresas que produzem embalagens (ecovalor), mas o montante é demasiado baixo, o que faz com que o orçamento não seja suficiente. “Não suporta os custos necessários nem permite uma aposta maior em tecnologia que facilitaria o aumento das percentagens de reciclagem”, explica Rui Berkemeier, engenheiro ambiental e colaborador da associação ambientalista Zero na área dos resíduos.

Além de o valor ser baixo, nem sequer é pago por muitas empresas. De 1 milhão e 250 mil toneladas de embalagens que aparecem no lixo, apenas 700 mil pagam o devido imposto, o que se traduz num “buraco” de dezenas de milhões de euros, que diminui a eficácia da reciclagem.

O desconhecimento aliado à pouca consciencialização ambiental de muitos cidadãos também não ajuda. “As pessoas pensam que mandamos tudo junto para dentro do carro do lixo. Isso é um mito. Cada circuito tem dias específicos. Vejo mais gente com vontade de fazer bem a reciclagem, mas fazem-na de forma errada: colocam vidros de janelas e espelhos no vidrão, caixas de pizza com gordura no papelão e plástico que não é embalagem no embalão”, afirma Bruno Lucas, motorista de pesados e manobrador de grua da Cascais Ambiente.

Nos Centros de Triagem é mais do mesmo: “Continua a existir um conceito errado de como reciclar. Chegam para-choques, estores, computadores. Não é por estes materiais terem componentes de plástico que devem ir para o contentor amarelo”, refere Nuno Simões, diretor do Ecoparque de Trajouce, em Cascais. A culpa nem sempre é dos cidadãos.

“Muitos destes materiais não cabem no Ecoponto. Há muitos operadores de recolha a fazer mal o seu trabalho”, diz.

O material indevidamente colocado nos Ecopontos é considerado ‘contaminante’ e prejudica a eficácia dos Centros de Triagem, pois estes têm de calcular o rácio entre energia gasta e mão de obra para poderem triar materiais sem comprometerem o seu equilíbrio económico.

O problema, porém, está longe de se resumir ao desconhecimento. Por interesses económicos, há materiais que não chegam sequer aos Centros de Triagem, sobretudo no caso do papel. “Há uma indústria paralela que alicia os comerciantes para não depositarem as embalagens nos Ecopontos, mas sim para as venderem diretamente a ‘sucateiros’, que também passaram a negociar e a operar neste ramo. Sempre que o valor do papel está em alta no mercado notamos que nos chega menos material”, denuncia o diretor do Ecoparque de Trajouce.

De granadas a animais mortos

A jusante do processo encontram-se os recicladores.

Compram a matéria-prima em leilões, mas nunca sabem em que condições lhes chega o material, daí todos terem um sistema de triagem próprio. “Junto com o papel pode chegar um bocadinho de tudo, desde plásticos a capas de telemóvel ou embalagens de iogurte. Os agentes poluentes obrigam a ter um sistema de crivagem muito rigoroso, porque qualquer partícula de plástico — ou de outro material — misturado com a pasta reciclada traduz-se, na fabricação do papel, num buraco”, explica Luís Saramago, diretor de marketing da Renova.

Ricardo Diogo, administrador da Ambigroup, empresa de reciclagem de metais, plástico e tratamento de resíduos elétricos e eletrónicos, assegura que “as embalagens que vêm da recolha seletiva estão, regra geral, num estado aceitável de contaminação”. O problema está no que chega pela via do lixo indiferenciado, que é separado num Sistema de Triagem Mecânico e Biológico. “Traz lixo orgânico agarrado, e nem sempre esses centros possuem o equipamento adequado.”

À Maltha, empresa que limpa o vidro para a indústria vidreira, já chegou um pouco de tudo: “Os camiões chegam cheios de vidro contaminado.

Já aqui tivemos granadas, morteiros e até animais mortos que nos param a fábrica”, revela José Oliveira, gestor fabril.

Não é por acaso que o vidro é o resíduo que aparece mais contaminado. A lógica economicista subjacente à reciclagem prevê a atribuição de valor à recuperação de cada material. Os cálculos fazem-se ao peso por tonelada: €21 para o vidro, €29 o alumínio, €120 o papel e cartão, €201 o aço e €203 o plástico. “É na não atribuição de valor aos materiais que reside a inconstância da forma como são geridos e tratados”, diz o responsável da Ambigroup Reciclagem.

Nuno Simões, diretor do Ecoparque de Trajouce, confirma: “O vidro é um fluxo que segue de uma forma muito crua para o reciclador. Se o produto tivesse um valor superior financiado pelo Sistema de Gestão de Resíduos Urbanos, seria possível ser triado. Assim não nos restam muitas opções.”

Nós, os ‘ecopatetas’ Ao não reciclar, cada cidadão está a contribuir para o aumento da percentagem de resíduos encaminhados para incineração e aterro, obrigando o município correspondente a ter de pagar uma taxa. “O dinheiro que poderia ser canalizado para ações de sensibilização ambiental é gasto assim. Acabamos todos por pagar na fatura da água a nossa inconsciência coletiva”, afirma Carmen Lima, coordenadora do centro de informação de resíduos da Quercus.

No mês passado, as penalizações no envio de lixo para incineradoras ou aterros duplicaram, mas os valores continuam a ser muito baixos: por tonelada, é cobrado apenas €5,5 no primeiro caso e €22 no segundo. “Ao existirem taxas mais elevadas nestes destinos, deixará de existir o fomento destas soluções”, defende o engenheiro ambiental Rui Berkemeier.

O maior risco nos aterros sanitários é a decomposição dos resíduos orgânicos. Caso não sejam retirados à cabeça, libertam gás metano e de efeitos de estufa para a atmosfera 21 vezes superior ao dióxido de carbono. Na incineração, os resíduos são queimados e transformados em energia. Porém, desperdiçam-se materiais recicláveis, e queimar plástico liberta CO2 fóssil. É o mesmo que queimar petróleo ou carvão.

“Somos ‘ecopatetas’. Andamos a contribuir para a criação de fluxos alternativos de lixo que acabam queimados em lixeiras a céu aberto ou a boiar em rios e mares. A única forma de levar água ao moinho de toda a gente envolvida na reciclagem é atribuir valor à matéria-prima”, explica o administrador da Ambigroup Reciclagem.

Num contexto de alterações climáticas, ainda se aguarda a fórmula mágica: soluções perfeitas não existem e, segundo Inês dos Santos Costa, secretária de Estado do Ambiente, “eram para terem sido tomadas há 20 anos”.

A associação ambientalista Zero enviou, no início de maio, para o Ministério do Ambiente uma proposta com medidas que permitirão criar nos próximos anos mais de 5 mil postos de trabalho diretos e permanentes neste sector. Para isso, é necessário investimento para que a indústria absorva mais matéria reciclada com o mínimo de energia dispensada e não tanta matéria em estado virgem. O futuro passa pelo sistema de recolha porta a porta, já com resultados positivos em algumas cidades, e por pre miar comportamentos corretos. Só assim, dizem os especialistas, deixaremos de ser ‘ecopatetas’.

jcpinto@expresso.impresa.pt